Pode-se
afirmar que as décadas de 1980 e de 1990 foram décadas paradigmáticas para a saúde pública do Brasil. A criação do Sistema Único de Saúde
(SUS) na década de 1980 representou para os gestores, trabalhadores e usuários
do sistema uma nova forma de pensar, estruturar, se desenvolver e produzir
serviços e assistência em saúde, uma vez que os princípios da universalidade de
acesso, da integralidade
da atenção à saúde,
da eqüidade,
da participação da comunidade, da autonomia das pessoas e da descentralização
tornaram a ser paradigmas do SUS. O sistema de saúde passou a ser, de fato, um
sistema nacional com foco municipal, o que se denomina ‘municipalização’
(Machado, 2005). A gestão do trabalho e da educação, nessa perspectiva, ganhou relevância nacional
e tornou-se elemento crucial para a implementação e consolidação do SUS.
Para
melhor compreender a problemática é preciso conhecer a cronologia das políticas
de Recursos Humanos,
com destaque para três momentos distintos, assim descritos.
O primeiro (1967-1974),
caracterizado por incentivo à formação profissional especialmente de nível
superior; estratégia de expansão dos empregos privados a partir do
financiamento público; incremento da contratação de médicos e atendentes de
enfermagem, reforçando a bipolaridade ‘médico/atendentes’; e incentivo à
hospitalização/especialização. O segundo momento (1975-1986) se caracteriza, na
primeira fase (1975-1984), pelo surgimento de dispositivos institucionais para
reverter o quadro existente. Já na segunda fase (1984-1986), pela sua
implementação com resultados, ou seja, aumento da participação do setor público
na oferta de serviços ambulatoriais e hospitalares; aumento da formação do
pessoal técnico e sua incorporação nas equipes de saude; e aumento do pessoal
que atua na rede ambulatorial. O terceiro momento (de 1987 em diante) é
caracterizado pelas mudanças estruturais rumo à Reforma Sanitária, marcadas
especialmente pelo processo de descentralização da assistência e,
conseqüentemente, dos recursos humanos que integram os serviços.
Inicia-se aí o processo que culminaria na reversão do quadro de pessoal, ora
concentrado na esfera federal ora na municipal. Toda a política de Recursos Humanos passa a girar em torno da
proposta da Reforma Sanitária – não só os aspectos gerenciais, mas também os
financeiros, na perspectiva de atender às demandas que impunham tal reforma. O
SUS torna-se uma realidade após longo debate constitucional (Machado, 2005,
p.276-277).
No
entanto, com o passar do tempo e com o avanço do processo de consolidação do
SUS, a realidade que se apresenta para a área de Recursos Humanos remete a mais dois momentos
distintos que são caracterizados por momentos de grande guinada da proposta da
Reforma Sanitária, ou seja, o primeiro considerado de anti-reforma e o segundo,
de reafirmação da reforma. O momento anti-reforma refere-se a toda a década de
1990, caracterizada pela adoção dos preceitos neoliberais em detrimento aos da
reforma sanitária. Isso transformou a questão de Recursos Humanos, ao longo da década, em um
enorme problema para a reforma sanitária, invertendo toda a lógica preconizada,
ou seja, de serem os trabalhadores (recursos humanos) peças-chave para a
consolidação do SUS. Fato de grande relevância nesse período foi a elaboração
da Norma Operacional Básica-RH (NOB-RH) (Brasil, 2005), que define princípios e
diretrizes para uma NOB que teve como objetivo principal a discussão da
centralidade do trabalho, do trabalhador, da valorização profissional e
da regulação das relações de trabalho em saúde.
No entanto, poucos resultados foram alcançados com a NOB-RH, uma vez que a
política que imperou neste período foi a antipolítica de Recursos Humanos, priorizando a privatização por
meio da terceirização de serviços, a flexibilização das relações e o laissez-faire
na abertura de novos cursos na área da saúde.
O segundo
momento de reafirmação da reforma inicia-se com o novo governo, em 2003,
caracterizado pelo retorno aos princípios de que saúde é um bem público e os
trabalhadores que atuam são um bem público. A mudança positiva nas políticas de
Recursos Humanos vem acompanhada da criação, no
governo Lula, da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, no
âmbito do Ministério da Saúde, e mais, com a criação de dois departamentos
distintos, um que trataria das questões de gestão
da educação e outro da gestão do trabalho, além da imediata reinstalação
da Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS, quando a gestão do trabalho passa a ser vista como
política de Estado considerando as relações de trabalho e suas implicações como
centrais para a dinâmica do SUS. O que significa dizer que questões oriundas do
momento anti-reforma, tais como a precarizaçao do trabalho, a ausência de
carreiras, os baixos salários pagos aos trabalhadores, a falta de negociação
entre gestores e trabalhadores, a total ausência de políticas regulatórias, bem
como a própria gestão do trabalho, enquanto estruturas organizacionais,
passaram a constituir a agenda central do governo federal. E mais, gestão do trabalho passou ser concebida com base
em uma visão política na qual a participação do trabalhador é fundamental para
a efetividade e eficiência do Sistema Único de Saúde. Dessa forma, o trabalhador é percebido
como sujeito e agente transformador de seu ambiente e não apenas um ‘recurso
humano’ realizador de tarefas previamente estabelecidas pela administração
local. Nessa abordagem, o trabalho é visto como um processo de trocas, de
criatividade, co-participação, e co-responsabilização, de enriquecimento e
comprometimento mútuos.
É
importante destacar que a área de Recursos Humanos, no setor saúde, como campo de
estudos e pesquisas data das últimas décadas do século XX, com ênfase após a
década de 1970. Os primórdios desses estudos, mais teóricos, apontavam para a
reflexão no campo da organização social das práticas em saúde. Já na década de
1980, a vertente foi a realização de estudos desvendando as tendências macro do
mercado de trabalho, como por exemplo, o assalariamento, o prolongamento da jornada
de trabalho, o multiemprego, a feminilização da força de trabalho. Na década de
1990, surgiram os estudos de cunho sociológicos sobre mercado de trabalho,
mundo do trabalho, e a própria conformação das profissões de saúde. Surgem
também estudos voltados aos temas da formação e educação desvendando o processo
de formação e capacitação dos profissionais de saúde de níveis superior e
técnico. Enfim, a área de recursos humanos passa a contar com diversos
estudos e análise fundamentais para a grande mudança de mentalidade,
transformando o acanhado e reduzido mundo dos recursos humanos em gestão do trabalho e da educação. Pensar e
formular na área da gestão passa a significar pensar e formular para
um complexo e vasto mundo do trabalho, no qual os que produzem estes serviços e
os que os gerenciam estão em permanente processo de interação e negociação.
Está
contido na área da gestão do trabalho um conjunto de ações que visam
a valorizar o trabalhador e o seu trabalho, tais como: a implementação das
Diretrizes Nacionais para a instituição ou reformulação de Planos de Carreiras,
Cargos e Salários no âmbito do SUS e o apoio às instâncias do SUS neste
sentido; a desprecarização dos vínculos de trabalho na área da saúde; o apoio à
implantação de Mesas de Negociação Permanente do SUS; a criação da Câmara de
Regulação do Trabalho
em Saúde – para debater, em especial, as questões relacionadas à regulamentação
de novas profissões na área da saúde, e a proposta de organização da gestão do trabalho e da educação na saúde nas
três esferas de governo, por meio do Programa de Qualificação
e Estruturação da Gestão do Trabalho e da Educação no SUS -
ProgeSUS (Brasil, 2006), dentre outras.
A gestão do trabalho é, pois, uma questão que tem
merecido, na atualidade, a devida atenção por parte de todas as instituições
que buscam a correta adequação entre as necessidades da população usuária e
seus objetivos institucionais. Pensar em gestão do trabalho como eixo da estrutura
organizacional dos serviços de saúde significa pensar estrategicamente, uma vez
que a produtividade e a qualidade dos serviços oferecidos à sociedade serão, em
boa parte, reflexos da forma e das condições com que são tratados os que atuam
profissionalmente na organização (Ariaset al., 2006, p.119), o que nos coloca
da importância de se estruturar uma efetiva política para a área nas três
esferas de governo, envolvendo os setores público e privado que compõem o
sistema de saúde e contribuindo, desta forma, para a promoção da melhoria e humanização do atendimento ao
usuário do SUS.