
Atikum
Os
Atikum fazem parte de um conjunto de grupos indígenas nordestinos que,
menosprezados pela etnologia clássica por serem considerados menos
importantes ou aculturados, só começaram a ganhar visibilidade a partir
da segunda metade dos anos 1980. Trata-se de grupos que eram vistos como
restos ou resíduos de uma etnia ancestral, recebendo o rótulo de
remanescentes indígenas. A partir principalmente da virada dos anos
80 para os 90, antropólogos críticos do paradigma da aculturação
espalharam-se pelo Nordeste a fim de elaborar monografias entre tais
grupos, tornando-os assim mais conhecidos e foco de diversos debates
acadêmicos.
Nome Os membros da "Comunidade Indígena de Atikum-Umã"
autodenominam-se índios de Atikum-Umã, em referência a uma
ancestralidade. Umã teria sido o "índio mais velho" e pai de Atikum,
cuja descendência se criou na aldeia Olho d'Água do Padre (antiga Olho
d'Água da Gameleira). Há, entretanto, uma outra versão que afirma ter o
nome Atikum surgido durante ritual de toré. No que se refere aos
registros documentados, a primeira referência ao nome Atikum data da
época do reconhecimento oficial desses índios pelo Serviço de Proteção
aos Índios (SPI) na segunda metade da década de 40, quando, em
comunicação interna do órgão, o chefe da 4ª Inspetoria Regional comenta,
referindo-se ao posto indígena da Serra do Umã, que o primeiro nome do
posto foi Aticum, devido provavelmente a um grupo com o qual os "Umans"
teriam se mesclado e o qual devia se chamar "Aticum" ou "Araticum". Mas,
no final do século passado, no Diccionario Chorographico, Historico e
Estatistico de Pernambuco, de Sebastião Galvão, "Araticum" constava como
um lugarejo do município de Floresta e, em 1968, Cestmir Loukotka, na
sua Classification of South American Indian Languages, indicava "Aticum"
ou "Araticum" como a língua extinta de uma tribo que então falava
apenas português, em Pernambuco, perto de Carnaubeira. Certo é que a
grafia correta para o grupo ficou sendo Atikum e que os índios não
estabelecem uma auto-referência como índios Atikum-Umã, mas sempre como
índios de Atikum-Umã, indicando uma subordinação à descendência de Umã
para Atikum, que formou a aldeia (comunidade indígena).
LínguaOs Atikum são falantes apenas do português, não
lembrando sequer o léxico de uma língua anterior - a não ser
pouquíssimas palavras que dão nome a certos elementos da natureza (por
exemplo: sarapó = cobra grande e comestível; toê = fogo). Se há uma
única referência com relação a Aticum (ou Araticum), como língua
extinta, quanto a Umã, pelo espaço territorial pelo qual se deslocavam
no século passado, pode-se insinuar, com apoio na Introdução à
Arqueologia Brasileira de Angyone Costa e em Os Cariris do Nordeste de
Baptista Siqueira, tratar-se de um grupo pertencente à família Cariri,
embora outros autores destaquem uma língua Umã como isolada ou
desconhecida.
Localização, demografia, aspectos jurídicos Na Terra
Indígena Atikum há vinte aldeias (ou sítios, como preferem chamar os
índios), entre as quais Alto do Umã (sede do posto), Olho d'Água do
Padre, Casa de Telha, Jatobá, Samambaia, Sabonete, Lagoa Cercada,
Oiticica, Areia dos Pedros, Serra da Lagoinha, Jacaré, Bom Jesus,
Baixão, Estreito, Mulungu, Boa Vista e Angico. Conforme o "Memorial
descritivo de delimitação (AI Atikum)" da FUNAI, de 1989, contava
naquele ano com uma população de 3.582 indivíduos. Segundo cartografia
oficial, a área localiza-se na região da serra das Crioulas e Umã, nos
limites do atual município de Carnaubeira da Penha, sertão de
Pernambuco. Os índios, no entanto, apontam a Serra do Umã como seu
território indígena. Com a emancipação de Carnaubeira, em outubro de
1991, do município de Floresta (onde se localizava a área indígena,
distante 54 km da sede desta cidade), foram discriminados dois distritos
para o novo município de Carnaubeira da Penha (sede há 13 km do posto
indígena): Barra do Silva e Olho d'Água do Padre, este uma importante
aldeia Atikum no interior da área indígena, onde, desde a fundação da
reserva, funciona uma feira dominical freqüentada também por não índios
que lá estabelecem trocas comerciais e outros negócios, bem como
promovem atividade política em período eleitoral. Além disso tudo, cabe
apontar a presença constante de posseiros e fazendeiros na área Atikum. Em
17 de agosto de 1993, a área indígena foi delimitada através da
Portaria 314, assinada pelo Ministro da Justiça. Em 5 de janeiro de
1996, um decreto presidencial (no Diário Oficial da União de 08.01.96)
homologou a demarcação da área, com uma superfície de 16.290 hectares.
Esta TI foi registrada no Cartório de Registro de Imóveis no dia
18.01.96 e no Serviço de Patrimônio da União em 27.08.96.
Aspectos ambientais e econômicosNa serra do Umã prevalece
um solo de tipo argiloso, em contraposição ao arenoso característico do
sertão que a rodeia. A vegetação na serra é predominantemente arbustiva,
sendo que em alguns trechos despontam árvores de maior porte. As
capoeiras são uma constante na paisagem local. Quanto à fauna,
destacam-se gaviões, corujas, tiús, pebas, tatus, cangambás, cobras,
preás, tamanduás, caititus e jacus. Tais animais, com exceção dos dois
primeiros, são freqüentemente caçados - com cachorros e espingardas -
pelos habitantes da área. O criatório doméstico é de galinhas, bodes,
vacas, carneiros e porcos. O uso de cachorros para guarda das casas é
generalizado. Dos frutos silvestres, destacam-se o umbu e o
maracujá. As frutas cultivadas são as seguintes, por ordem de
quantidade: banana, manga, caju, mamão, pinha, goiaba, jaca, coco,
laranja, limão. Há uma boa produção de mel também. A agricultura,
base da economia Atikum, faz com que as roças de mandioca, fava, milho,
feijão, arroz, mamona e algodão sejam também uma constante na paisagem
da Serra do Umã. Acrescenta-se a isso o plantio de maconha (Cannabis
sativa) que, apesar de não fazer parte de uma agricultura Atikum,
soma-se ao panorama geral, uma vez que a serra, bem como os municípios
de Carnaubeira da Penha e Floresta se inserem no chamado "polígono da
maconha", que engloba vários municípios do sertão pernambucano. No mais, vale mencionar que prevalecem as habitações de taipa e alvenaria, ocorrendo também as de palha.
Os Umãs e o Povoamento da Serra A partir da passagem do
século XVII para o XVIII, essa região geográfica foi palco de muitos
conflitos entre índios e brancos que penetravam cada vez mais nas terras
dos primeiros, levando adiante a frente de expansão pastoril. Se não
há notícias da existência de um grupo indígena com o nome Atikum antes
dos anos 1940, existem diversas referências quanto a um grupo denominado
Umã, que foi aldeado, juntamente com os grupos Xocó, Vouve e Pipipan,
em 1802 por Frei Vital de Frescarolo, em lugar onde hoje é uma das
aldeias da área indígena. Tal aldeamento não durou muito e os citados
grupos voltaram a migrar pelos sertões, do Ceará a Sergipe, sempre
fugindo dos caminhos do gado. Além dos acima citados, vários foram os
grupos que se entrecruzaram - inclusive negros quilombolas - nesses
deslocamentos. Sabe-se dos seguintes registros dos Umãs: por volta de
1696 andavam pelo vale do rio São Francisco; em 1713 estavam na ribeira
do Pajeú; em 1746 em Alagoas, entre os rios Ipanema e São Francisco; em
1759 em Sergipe; em 1801 foram aldeados em Olho d'Água da Gameleira
(onde hoje é a aldeia Olho d'Água do Padre na Serra do Umã) e de onde se
dispersaram em 1819; em 1838 são encontrados nas proximidades de
Jardim, no Ceará; em 1844 se encontram novamente próximos ao antigo
aldeamento, mais especificamente em Baixa Verde. Ainda é bom lembrar
que, quando aldeado, o grupo Umã - que recebia diversas denominações,
tais como Huanoi, Huamoi, Huamães, Huamué, Humons, Umã, Umães, Uman,
Umãos, Urumã, Woyana - foi obrigado a dividir o aldeamento com os grupos
Xocó e os Vouvê, que todos estes três grupos sempre se mantiveram
próximos aos Pipipãs e que em 1852 ainda existiam "índios bravios" na
Serra do Umã ou nas suas vizinhanças. Em meados do século XIX cessam as
informações quanto a esses índios, que em 1943 se apresentam no SPI
buscando reconhecimento de suas terras. Num trabalho sobre o
cinqüentenário da cidade de Floresta, Alvaro Ferraz (1957) aponta
algumas serras que vinham sendo ocupadas por negros desde o período
escravocrata: "Tal fenômeno pode se observar na Serra do Umã e na dos
Crioulos. Na do Umã, eles se mesclam com facilidade com o grupo indígena
ali existente, o que se poderá verificar à simples análise dos tipos
humanos do aldeamento Atikum-Umã do alto da serra". Tal mestiçagem fez
com que essa "tribo" ficasse conhecida como "os negros da Serra do
Uman". Conclui-se daí que a população que veio habitar definitivamente a
Serra do Umã se constitui a partir de grupos (de índios, negros e
brancos) de tradições e culturas diversas.
Formação da Comunidade Indígena de Atikum-Umã No início dos
anos 1940, os membros da comunidade camponesa que habitavam a Serra se
auto-identificavam como os caboclos da Serra do Umã. Nessa época andavam
insatisfeitos com a cobrança pela prefeitura de Floresta de impostos
sobre o uso do solo ali cultivado e com o fato de os fazendeiros
vizinhos virem colocando o gado para pastar sobre suas roças. Informados
por índios Tuxá (do município de Rodelas, na Bahia) de que havia um
órgão do governo que estava reconhecendo territórios indígenas no
Nordeste, alguns caboclos procuram, em Recife, o Serviço de Proteção aos
Índios (SPI), afirmando-se caboclos descendentes de índios e
reivindicando a criação de uma reserva indígena. Como condição para tal
reconhecimento, o SPI impôs a demonstração de um ritual de Toré,
tradição que, aos olhos do inspetor do citado órgão no Nordeste,
atestaria a "consciência étnica" dos caboclos. Despreparados para uma
exibição dessa tradição ritual, os caboclos procuram os Tuxá, que
enviam oito índios à Serra para "ensinar-lhes” o toré. Entre 1943 e
1945, deixam tudo pronto quanto ao serviço do índio e é nesta ocasião
que se desloca para a Serra um fiscal do SPI, que assiste a um ritual de
toré, atestando, conseqüentemente, a presença indígena ali. Em 1949 é
fundado o posto indígena e os caboclos se elevam à categoria de índios
oficialmente reconhecidos pelo Estado Nacional - e até os dias atuais o
toré vem sendo usado como sinal diacrítico na manutenção da etnicidade
Atikum, o que pragmaticamente lhes dá direito de acesso seguro à terra.
O Regime de Índio Atikum Ao "aprenderem" o toré, os Atikum
foram se especializando cada vez mais em tal prática ritual.
Constituíram um corpo de saber denominado por eles de "ciência do
índio", revestida por uma áurea de mistério, e que marcaria sua
especificidade como grupo étnico. Esse corpo de saber é dinâmico e seus
ingredientes, mutáveis, pois novos elementos surgem durante os rituais e
são incorporados pelos seus praticantes. Mas se esse corpo de saber é
fluido, deve existir algo para garantir o desempenho ritual que marca a
sua indianidade, ou seja, que confirme periodicamente a sua condição de
índios face às expectativas do Estado. É preciso, portanto, ter um
"regime de índio". É preciso que os membros do grupo sejam "regimados no
toré", independentemente de serem detentores de saberes mais profundos,
para que o grupo se mostre, de forma essencialmente política, como a
"comunidade indígena de Atikum-Umã". (cf: Grünewald, 1993). Isso leva
à questão de quem realmente são considerados índios de Atikum-Umã pelos
próprios Atikum. Consideram-se índios aqueles que participam da
tradição do toré, sendo, preferencialmente "regimados" na mesma, detendo
a "ciência do índio", aqui entendida como um corpo de saberes dinâmicos
sobre o qual se fundamenta o "segredo da tribo" (cf: Grünewald, 1993).
Em toda essa tradição ritual, destaca-se também como elemento
fundamental a jurema (Mimosa hostilis Benth) - planta sagrada que, de
domínio exclusivamente indígena, promove também uma separação entre
índios e brancos, embora seu uso seja comum também a outros complexos
rituais do sertão nordestino, como o catimbó, por exemplo. Os Atikum
utilizam a casca da raiz da jurema macerada e misturada com água como
bebida sagrada ("anjucá") que representa o sangue de Jesus e é consumida
principalmente durante seus rituais (torés públicos ou privados, estes
divididos em trabalhos de gentio, terreiro e ouricuri), quando os índios
entram em contato - em larga medida pela via da possessão - com os
"encantos de luz".
Organização Social e Política O sistema de compadrio que
opera na Serra do Umã, sobrepondo-se ao parentesco, parece prover, mais
que os elos étnicos, o principal elemento de união entre os habitantes
da Serra, embora muitas vezes ele ultrapasse os limites da fronteira
étnica. A organização política Atikum divide-se, por imposição do
órgão tutor (primeiro SPI e depois FUNAI), em cacique (papel de
representante da comunidade frente à sociedade nacional, além de
aconselhamento interno), pajé (para cuidar da saúde dos índios) e
representantes das aldeias que formam a liderança tribal. Todas essas
funções deveriam ser preenchidas através de eleições, mas faccionalismos
têm promovido a permanência nas lideranças dos que detêm poder
coercitivo, em especial os produtores de maconha.
Nota sobre as fontesOs textos que tratam especificamente
desta etnia são a dissertação de mestrado de Rodrigo de Azeredo
Grünewald, "Regime de Índio" e faccionalismo, defendida no Museu
Nacional em 1993 e, ainda, do mesmo autor, o artigo "A tradição como
pedra de toque da etnicidade" publicado no Anuário Antropológico/96, os
dois capítulos, "Apresentando: Índios e Negros na Serra do Umã" e
"Etnogênese e 'Regime de Índio' na Serra do Umã" em livros a sairem em
breve, o artigo "A Jurema no 'Regime de Índio': O caso Atikum" que
aguarda publicação na Fundação Joaquim Nabuco e a comunicação "A Jurema e
o 'Regime de Índio' Atikum", apresentada no I Encontro de Estudos sobre
Rituais Religiosos e Sociais e o Uso de Plantas Psicoativas, no âmbito
do Seminário internacional "O Uso e o Abuso de Drogas", realizado na
Universidade Federal da Bahia. Informações preliminares de quarenta anos
atrás podem ser encontradas no levantamento de Hohenthal Jr. "As tribos
indígenas do médio e baixo São Francisco".
Fontes de Informação: Rodrigo de Azeredo Grünewald Universidade Federal da Paraíba
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